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sexta-feira, 30 de abril de 2010

CAPITALISMO

Novo precedente de luta no atual capitalismo: o primeiro encontro internacional dos atingidos pela Vale Ana S. Garcia - 29/04/2010
Um momento histórico. Assim descreveram muitos dos participantes este primeiro encontro internacional. Por primeira vez, representantes de organizações, sindicatos e comunidades em lutacontra a mineradora brasileira Vale se reuniram na cidade onde se encontra seu “headquarter”. Abrimos um precedente: nunca houve tal articulação frente a uma empresa brasileira. Historicamente, são as estadunidenses ou européias que vêm explorar nossos recursos, nossa mão de obra, levar a riqueza e deixar a pobreza. São eles os imperialistas. O encontro mostrou, no entanto, que a Vale faz o mesmo. Seu diferencial é um símbolo de verde e amarelo e o apoio do Estado brasileiro. Ela se diz representante do Brasil nos lugares onde chega. Um Brasil que está crescendo, se tornando “desenvolvido”, e buscando participar das instâncias de governança global para ditar as regras no sistema internacional junto aos grandes, sem questionar ou alterar, no entanto, a hierarquia internacional do próprio sistema capitalista.

A Vale atua hoje em cerca de 30 países. Sua internacionalização tem inicio após sua consolidação do mercado interno brasileiro, onde cresceu e adquiriu bases para se internacionalizar, devido ao apoio do Estado e do povo brasileiro, que ergueu o “império Vale” com o seu trabalho. Já em 1984 ela compra parte da siderúrgica California Steel Industries, em conjunto com uma siderúrgica japonesa. No início dos anos 90, ela entra na Europa comprando parte de uma siderúrgica francesa. Mas é a partir de 2001, com a administração de Roger Agnelli, que a Vale inicia uma política agressiva de expansão internacional: em 2000 ela entra no Oriente Médio adquirindo 50% da Gulf Industrial Investment Company (empresa de capital norteamericano); 2001 e 2002 ela inicia projetos de minerais não ferrosos no Peru e no Chile; e em 2003 adquire parte de uma empresa norueguesa, criando a Rio Doce Manganese Norway (1).

A internacionalização da Vale tem dois momentos centrais, que irão determinar sua atuação dentro e fora do Brasil nos dias de hoje. Primeiro, o maior mercado consumidor de minério de ferro do mundo – a China – fecha com a Vale em 2001 um acordo de fornecimento de 6 milhões de toneladas de minério de ferro por ano, ao longo de 20 anos. As negociações entre as mineradoras mundiais e a Baosteel chinesa tornam – se referência para o preço anual do minério de ferro no mercado internacional (2). A Vale é altamente dependente do mercado mundial, sendo a China o destino de 17 de suas vendas.

Segundo, a compra da mineradora canadense Inco, em 2006, torna a Vale a maior produtora mundial de níquel, além do minério de ferro. A criação da Vale Inco tem impactos gerais na economia brasileira, tornando o Brasil um investidor internacional, e não apenas um receptor de investimentos estrangeiros (3). A compra da Inco compreendeu US$ 19 bilhões, sendo seu preço US$ 17,8 bilhões mais US$ 1,2 bilhão de dívida líquida (4). Para esta compra, ela se associou a bancos internacionais, como Credit Suisse, UBS, ABN Amro e Santander. Com isso, o endividamento da Vale aumentou para US$ 22 bilhões em 2006 (5). Este fato, juntamente com a queda relativa do preço mundial do níquel no ano de 2009, pode explicar a postura agressiva da Vale contra os trabalhadores canadenses, buscando romper com direitos adquiridos ao longo de décadas de lutas trabalhistas na antiga Inco. No entanto, os trabalhadores se recusam a arcar com os custos de um possível “mal negócio” da Vale, e resistem em um greve histórica.

A compra da Inco também significou a diminuição de sua base brasileira: de 98% dos ativos até 2006, passou a 60% (6). A companhia incorporou projetos na Indonésia e Nova Caledônia. Em 2007 ela entra no mercado de carvão, com a compra da AMCI australiana, e com o projeto da mina de Moatize em Moçambique. As atividades na África, apesar de apresentadas como um “mercado natural” para o Brasil, devido a similitudes de língua e histórica, buscam, na verdade, garantir espaços de exploração na competição com empresas chinesas com vistas ao mercado daquele país.

Nota-se que a estratégia de internacionalização da Vale está ligada ao controle de toda a cadeia produtiva, no sentido de “integração para trás” na cadeia siderúrgica, onde a empresa garante o fornecimento do produto primário. A Vale buscou “enxugar” suas operações logo após a privatização, e passou a especializar-se em minério de ferro e logística. Sua logística é utilizada a serviço do agronegócio e da siderurgia, transportando produtos do aço, soja, fertilizantes, combustíveis, entre outros (7). Ao mesmo tempo, ela busca o controle de toda a cadeia de produção, incluindo por exemplo o fornecimento de energia, entrando assim em projetos de grandes hidrelétricas, em especial no estado de Minas Gerais, mas também no norte do país, como atualmente Belo Monte (8). A sua expansão no setor de fertilizantes está também diretamente ligada à internacionalização: os projetos na Argentina, Peru, Moçambique e Canadá visam a produção de potássio e fosfato, necessário para produção de fertilizantes, que será aumentada com compra de parte das operações da Bunge pela Vale (9).

Participantes do Canadá, Moçambique, Chile, Peru, Argentina e Nova Caledônia vieram ao encontro internacional no Rio de Janeiro denunciar os problemas na atuação da Vale nos seus países. Os participantes brasileiros responderam a eles com um espelho, um reflexo, uma dupla face. A exploração dos trabalhadores, o desrespeito ao meio ambiente e aos direitos humanos mais básicos nas comunidades são padrões que a Vale vem buscando impor nos outros países, do mesmo modo que dentro do Brasil,nas localidades onde atua. Diferentemente de empresas do chamado “primeiro mundo”, a Vale não atua com um duplo padrão de comportamento, mas sim uma “corrida para baixo”. E o caso dos direitos trabalhistas no Canadá, Itabira, Congonhas, Parauapebas e Barcarena; de comunidades que lutam por indenizações justas e contra remoções forçadas, como em Moçambique e Açailândia; do uso de milícias armadas no Peru e no Rio de Janeiro; desrespeitos às populações indígenas na Nova Caledônia e no Norte do Brasil; ameaça de impactos ambientais e poluição no Chile, Argentina, Serra da Gandarela, Ourilândia do Norte e Canaã dos Carajás. Participantes internacionais expuseram uma realidade que os movimentos sociais e sindicais no Brasil conhecem na própria pele, nas próprias experiências de vida de cada pessoa presente nesta jornada de abril.

Podemos afirmar que o encontro refletiu uma dinâmica dupla do imperialismo atual: o aprofundamento do capitalismo para dentro ao mesmo tempo que sua expansão para fora. Esta é a forma com que Panitch e Gindin descrevem a fase imperialista estadunidense, a deepen of capital at home and expansion of capital abroad (10). O capitalismo brasileiro amadureceu, se aprofundou, e por sua vez se transnacionalizou. Em sua análise sobre o imperialismo, Lenin cita um discurso do político inglês Cecil Rhodes, que afirmava que o imperialismo era necessário para acalmar as massas de trabalhadores na Inglaterra. “O império é uma questão de estômago”, segundo ele era necessário ser imperialista para amansar as massas e evitar uma guerra civil (11). No Brasil, e no caso da Vale, isto se verifica de forma diferente. A expansão das empresas brasileiras para o exterior estaria de alguma forma beneficiando a classe trabalhadora no Brasil? Como os lucros feitos pelas empresas no exterior são revertidos para o país? Não há estudos claros sobre isso, mas algo é certo: as comunidades e trabalhadores são explorados dentro e fora do Brasil. Como diversas vezes repetido durante o encontro, a riqueza é privatizada, mas a pobreza e os passivos ambientais e sociais são socializados. O papel de manter as massas acalmadas é jogado especialmente pelo Estado brasileiro, com políticas sociais que levam a uma relativa melhoria financeira nas famílias mais pobres. O preço que pagamos por esta relativa melhoria de curto prazo é o silêncio frente aos problemas permanentes, que não são de hoje, e somente têm chance real de serem solucionados pela pressão e organização popular. A empresa aparenta não ter qualquer preocupação em considerar os seres humanos e a natureza, suas duas principais fontes de exploração e riqueza. A ganância pelo lucro e a truculência com a classe trabalhadora é a principal característica de sua atuação, descrita por todos os participantes do encontro.

O encontro foi mais do que um evento de três dias no Rio de Janeiro. Ele foi um processo de um ano de preparação, contatos, conversas, teleconferências, viagens, reuniões. Foi uma construção contínua. Também não foi um simples evento de longas mesas de discussão. As caravanas no Norte e em Minas Gerais deram a todos nós a vivência e convivência real entre iguais. Imagine-se um camponês peruano que desce da Van no alto de uma serra em Conceição do Mato Dentro – no morro ao lado um barulho forte e fumaça da explosão da pedreira de uma mineradora. Ele se encontra com um grupo de camponeses, pés descalços, negros, confusos e sem esperança. São remanescentes de quilombolas. Estão ameaçados de expulsão de suas terras, que pertencem a várias gerações de suas famílias. Com os olhos um no outro, um reconhecimento, e uma sensação de que há de motivar o outro à luta. O camponês de Cajamarca diz aos seus companheiros de Minas Gerais: “Somos como arboles. Vamos a morrir en pie, pero nunca de rodillas”. Em Itabira, cidade natal da Vale, enfeitada com poemas de Carlos Drummond em cada esquina, impressos em chapas de aço feitas com o minério de ferro da própria cidade. Descem da Van dois trabalhadores operários da Vale Inco no Canadá. Estão em plena luta, há 9 meses em greve pela preservação de seus direitos adquiridos através também da luta de seus avós e pais. Sentem-se em casa ao chegarem na sede do sindicato que os recebe, há café, água, biscoitos, uma estrutura confortável. Frente a frente, se reconhecem nos companheiros, trabalhadores e sindicalistas de Itabira. Pedem apoio a sua luta. Um deles diz aos colegas: “Me perguntaram aqui como estamos aguentando nove meses em greve. Eu não tinha parado para pensar. Posso dizer que não tenho outra escolha. Não posso olhar nos olhos dos meus filhos, não posso pensar em jogar para o alto, sem lutar, o que meus pais e avós conquistaram. É o mesmo que tirar o futuro de meus filhos. Antes eu era apenar um trabalhador. Agora eu sou um militante”. Muitas trocas, muitos vivências, uma sensação de estarmos a vontade com pessoas que tínhamos acabado de conhecer.

No Rio de Janeiro, tivemos dias afobados. Correria, de repente, muita gente, muito mais do que esperávamos. Tivemos a sensação de sermos grandes. O que nos une mundialmente? Quais são nossas demandas? Quais são as nossas estratégias de enfrentamento? Podemos ter estratégias comuns? Sentimentos oscilavam entre a euforia de termos conseguido realizar este encontro, a emoção de vermos a enorme representação de organizações e países, ao mesmo tempo, as dificuldades frente a uma empresa tão poderosa. E as dificuldades de conciliar diferentes expectativas e demandas. Entre objetivos políticos de longo prazo, e necessidades imediatas de populações atingidas. Entre a luta pela soberania nacional e popular, e o questionamento do modelo de desenvolvimento baseado na extração dos recursos naturais. Entre trabalhadores e sindicalistas que têm na mineração sua fonte de renda e trabalho, e comunidades e ambientalistas que lutam para impedir a entrada da mineração em seu território. Demandas pela reestatização da Vale no Brasil e estatização nos outros países, e demandas por compensação e reparação de danos ambientais e indenização a famílias removidas. Experiências com empreendimentos mineradores e siderúrgicos de muitas décadas, lutas pela mitigação dos impactos de empreendimentos recentes, e a rejeição completa à instalação da atividade mineradora e siderúrgica. Afinal, o que nos une? O que estamos fazendo juntos aqui? Muitas diferenças políticas não se iniciaram neste encontro, e portanto não foram solucionadas ali. Mas algo pareceu claro: a luta nos une. A luta por direitos e a luta pela mudança do sistema devem caminhar juntas. Dentro de cada comunidade, movimento, todas as lutas foram reconhecidas por todos como legitimas. O reconhecimento mútuo gerou o sentimento de união. Lutadores e lutadoras se sentiram unidos frente a um mesmo inimigo, uma empresa transnacional que é reflexo da atual fase do capitalismo mundial. Saímos mais unidos, muito emocionados e muito mais fortes.

∗ Ana S. Garcia é doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio, e membro do Instituto Rosa Luxemburg Stiftung.

(1) Godeiro, Nazareno/ Moura, Efrain/ Soares, Paulo/ Vieira, Valério: “Vale do Rio Doce. Nem tudo que reluz é ouro, da privatização à luta pela reestatização". São Paulo, Editora Sundermann, 2007. Casanova, Loudes/ Hoeber, Henning: “Vale: uma líder multinacional emergente”, In Ramsey/ Almeida (org.): A ascensão de multinacionais brasileiras. Rio de Janeiro, Elsevier; Belo Horizonte, Fundação Dom Cabral, 2010.

(2) “Baosteel abre as portas para reformulação de preços”, Valor Econômico, 26 de março, 2010.

(3) De acordo com pesquisa realizada pela fundação empresarial Dom Cabral, em 2006 as vinte maiores transnacionais brasileiras investiram US$ 56 bilhões no exterior. O Investimento Brasileiro no Exterior (IBE) é especialmente concentrado nas empresas de recursos naturais e primários, Vale e Petrobrás. Ver www.fdc.org.br.

(4) Casanova, L/ Hoeber, H.: ibid.

(5) Godeiro et.al: ibid.

(6) ibid.

(7) ibid.

(8) “Vale entra na disputa pela hidrelétrica de Belo Monte”. Estado de São Paulo, 23/02/2010.

(9) “Vale deve estimular expansão em fertilizantes”. Valor Economico, 18/01/2010.

(10) Panitch, Leo/ Gindin, Sam: Global capitalism and American Empire. Socialist Register 2004. London, Merlin Press.

(11) Lenin, V.I: O Imperialismo, fase superior do capitalismo. Centauro Editora, 3 edição. 2005 (1916).

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